Número de armas no Brasil volta a crescer em 2023 e PF terá que fiscalizar ao menos 4,8 milhões de armas de fogo a partir de 2025

A reafirmação do papel da Polícia Federal como órgão central do sistema nacional de controle de armas foi uma sinalização importante e adequada, tendo em vista a maior proximidade da instituição com as demandas sociais e de segurança pública

Os dados sistematizados pelo 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública trazem alguns alertas importantes sobre a política de controle de armas e seus reflexos na segurança pública do país. Após ser um dos temas centrais do debate político-eleitoral de 2022, a discussão em torno da política de controle de armas de fogo no Brasil parece ter perdido visibilidade entre 2023 e 2024. Contudo, os dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) da Polícia Federal indicam que, embora com menor visibilidade, o mercado volta a crescer significativamente em 2023 (34%) e o volume total de armas com registros ativos junto à PF agora ultrapassa os 2 milhões. Se somarmos a este número o total de armas com registros vencidos no Sinarm (1,7 milhão) e o total de armas de fogo de caçadores, atiradores e colecionadores (CAC) recadastradas junto à PF (963 mil), temos o cenário mais completo que passará a ser de responsabilidade (gerenciamento de informações e fiscalização) da PF a partir de 2025: 4,8 milhões de armas de fogo.

Seis anos após o início das mudanças na política de controle sobre a circulação de armas de fogo no país que permitiram o acesso da população a grandes quantidades de armas e munições e um ano após a edição do decreto nº 11.615/23, que voltou a restringir esse acesso, é possível analisar se houve mudanças significativas na demanda por armas de fogo e compreender melhor as dinâmicas desse mercado. Os dados coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública permitem refletir sobre os desafios da fiscalização e controle sobre o mercado, com destaque para a necessidade de preparar as instituições competentes para que desempenhem suas funções de maneira eficaz.

Após mais de 15 anos sob uma política restritiva de acesso a armas de fogo e munições, implantada com a promulgação do Estatuto do Desarmamento em 2003, houve uma mudança drástica a partir de 2018, com sua intensificação a partir de 2019. Através de decretos, portarias e instruções normativas, o Governo Federal reduziu as restrições, permitindo que a população tivesse acesso a grandes quantidades de armas de fogo e munições.

Entre 2017 e 2022, o número de armas registradas no Sistema Nacional de Armas (Sinarm) cresceu 144,3%, passando de 637.972 para 1.558.416 registros ativos. No mesmo período, o aumento do número de pessoas com certificados de registros de armas de fogo de CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), sob responsabilidade do Exército Brasileiro, foi da ordem de 1.140%, chegando a 783.385 certificados em 2022.

Diante do aumento expressivo na demanda por armas de fogo e da compreensão de que a facilitação do acesso foi um dos principais fatores desse crescimento, a posse da nova gestão no Governo Federal, em 2023, trouxe outra mudança significativa na política de controle de armas. Um dos primeiros atos foi a edição do decreto 11.366/2023, que congelou temporariamente o mercado de armas, determinou o recadastramento das armas adquiridas por CACs a partir de 2019 e criou um grupo de trabalho para discutir uma nova regulamentação do setor. Tal esforço culminou na publicação do já mencionado decreto 11.615, em julho de 2023, que estabeleceu novas diretrizes para o controle de armas no país.

No entanto, mesmo com a nova política mais restritiva e a redução dos limites de armas de fogo que poderiam ser adquiridas, o cenário ainda preocupa. Os dados do Sinarm para 2023 revelam que os registros de armas continuam aumentando: entre 2022 e 2023 os números saltaram 34% e atingiram a marca de 2.088.048 registros. Isso significa que o crescimento no período 2017-2023 foi de 227,3%. Não foi possível atualizar os dados dos CACs devido ao não fornecimento de dados por parte do Exército, uma questão que será abordada posteriormente.

O crescimento entre 2022 e 2023 foi consistente em vários estados, com destaque para o Amapá, que teve um aumento de 61,5% (embora ainda seja o estado com menor número absoluto de registros ativos), Mato Grosso do Sul, com 53,2%, e Roraima, com 50,4%. Em contraste, houve uma pequena redução no Rio de Janeiro, de 2,5%, e uma redução mais significativa em Sergipe, de 8,7%. É possível que muitos desses registros sejam de pedidos feitos ainda no final de 2022, antes da entrada em vigor da nova política de controle. No entanto, o grande número de registros também pode indicar que a demanda por armas de fogo permanece forte, mesmo com as novas restrições. A Unidade da Federação com o maior número absoluto de registros ativos é São Paulo, com 303.785, seguida pelo Distrito Federal, com 267.246, o que pode ser explicado pelo fato de a capital federal abrigar muitos registros na categoria de “órgão público”. Destaca-se, também, o Rio Grande do Sul, com 218.655 registros.

Quando observados os dados referentes às espécies de armas de fogo com registros ativos no Sinarm, nota-se uma prevalência das pistolas tanto para registros vinculados a pessoas físicas quanto a pessoas jurídicas. As pistolas são 54,1% dos registros de pessoas físicas e 52,3% daquelas de pessoas jurídicas. Enquanto as pistolas repetem o mesmo padrão nos dois perfis, a proporção muda ao analisarmos rifles, fuzis e carabinas: eles correspondem a 12,3% dos registros de pessoas físicas e a 3% entre pessoas jurídicas, indicando que armamentos de maior calibre estão mais presentes entre pessoas físicas do que entre pessoas jurídicas. Esta análise também fortalece a hipótese de que um dos grandes impactos da flexibilização da política de controle de armas a partir de 2018 foi a mudança no perfil do armamento civil no país. O revólver deixa de ser a arma mais frequente, sendo substituído pela pistola, ao mesmo tempo em que armas e calibres com maior potencial ofensivo passam a ser mais facilmente encontradas entre civis.

Mas quem está comprando armas de fogo no Brasil? Segundo dados relativos exclusivamente a pessoas físicas,[1] 96% dos registros ativos estão em nome de homens, enquanto apenas 4% estão em nome de mulheres. Esses dados corroboram pesquisas anteriores sobre o tema (Keinert, 2007; Santos, 2021) que mostram que, apesar de haver um discurso de que a posse de armas de fogo aumentaria a segurança das mulheres, elas parecem não ter aderido a essa ideia. A relação entre homens e armas de fogo tem sido amplamente discutida na literatura, que busca explicar por que são predominantemente homens que fazem essas aquisições.

A intersecção entre masculinidades frágeis e marginalizadas e o uso de armas de fogo é um tema intricado, que exige análise cuidadosa. Em muitas culturas, a posse de armas está intimamente ligada à construção da masculinidade e às normas tradicionais, que pressionam os homens a serem agressivos, controladores e emocionalmente impenetráveis. Esse contexto pode levar à busca de validação por meio do uso de armas de fogo, que são frequentemente vistas como símbolos de poder e controle, reforçados por mídias e algumas retóricas políticas. Ademais, relações entre o discurso armamentista e ideologias de extrema-direita passam pela construção de um certo ideal de masculinidade hegemônica atrelado à defesa de valores tradicionais e familiares conservadores (Forner e Soares, 2024).

A crença de que armas de fogo proporcionam segurança pessoal é amplamente disseminada, especialmente entre homens. No entanto, a realidade é mais complexa e preocupante. Estatísticas indicam que a presença de armas em lares pode aumentar o risco de violência doméstica e acidentes (Studdert et al, 2022), desafiando a noção de que armas são instrumentos de proteção eficazes. Assim, a conexão entre masculinidades frágeis e o uso de armas de fogo não apenas perpetua estereótipos perigosos, mas também pode exacerbar a violência dentro dos lares, onde mulheres e crianças tendem a ser as principais vítimas, o que pode explicar por que mulheres não aderiram às armas de fogo.

Além de reduzir os limites de armas que podem ser adquiridas pela população, a nova política de controle destaca a mudança dos papéis das instituições envolvidas na fiscalização e controle do mercado de armas. Nas últimas décadas, essa responsabilidade foi dividida entre a Polícia Federal e o Exército Brasileiro. A primeira era encarregada do registro e fiscalização de armas para defesa pessoal, bem como das armas de propriedade das polícias civis e empresas de segurança privada. O Exército, por sua vez, cuidava do registro e fiscalização dos CACs, além das armas de militares, policiais militares e bombeiros militares.

No entanto, diante de evidências de que o Exército enfrentava dificuldades em desempenhar esse papel de maneira eficaz, a nova política decidiu transferir a fiscalização dos CACs para a Polícia Federal. Esta mudança visa melhorar a fiscalização e o controle sobre o mercado de armas, garantindo uma supervisão mais rigorosa e eficiente. A reformulação busca assegurar que as instituições estejam mais bem preparadas para exercer suas funções e enfrentar os desafios associados ao controle de armas no Brasil.

A decisão, apesar das críticas recebidas, demonstrou ser acertada, especialmente após a divulgação dos resultados de uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) que expôs enormes fragilidades dos militares no cumprimento de seu papel. De acordo com o relatório, no período entre 2019 e 2022, foram registradas milhares de armas para pessoas privadas de liberdade, o que é expressamente proibido pelo Estatuto do Desarmamento. Além disso, milhares de munições foram vendidas a pessoas já falecidas, evidenciando sérias lacunas no controle e na fiscalização. O banco de dados utilizado pelo Exército também foi criticado por sua obsolescência, o que dificultava a obtenção de informações básicas devido à rusticidade do sistema.

Outro aspecto que sublinha a inaptidão do Exército em desempenhar seu papel no controle do armamento civil é a ausência de respostas às solicitações feitas para obtenção de informações para este Anuário. Desta forma, infelizmente, foi impossível atualizar o número total de CACs em 2023. O gerenciamento das informações e a fiscalização de parte do armamento civil, até então responsabilidade do EB, não é uma mera atribuição burocrática. Parece haver uma incompreensão, por parte da corporação, do interesse público sobre o tema e também com relação ao impacto desse tratamento burocratizado para a segurança pública, sobretudo quando se oportunizam desvios entre o mercado legal e o mercado ilegal e exploração de vulnerabilidades no sistema de controle, como destacado na auditoria do TCU. Neste sentido, é importante destacar a postura da Polícia Federal. Além da iniciativa de transparência ativa, ao disponibilizar informações em dados abertos, a PF colaborou com o processo de solicitação e revisão de dados, entendendo a importância deles para a compreensão dos desafios da política pública.

No entanto, é crucial destacar que, embora tenha sido uma decisão acertada que pode promover um controle mais eficaz e transparente sobre o mercado de armas, a transferência de atribuições do Exército para a Polícia Federal não será simples. Conforme dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, até o final de 2022 havia 783.385 certificados de registros ativos de CACs no país, abrangendo um total de 1.261.000 armas (Santos, 2024). Isso representaria um aumento de mais de 60% no número total de armas sob responsabilidade da PF, além de centenas de milhares de locais a serem fiscalizados e uma demanda crescente por serviços como emissões de guias de trânsito, renovações de registros, transferências de armas e fiscalização de clubes de tiro, entre outras atividades correlatas, que poderão sobrecarregar a instituição.

Segundo o cronograma divulgado pelo governo e pelas instituições, a partir de janeiro de 2025 a Polícia Federal assumirá essas responsabilidades. Entretanto, faltando apenas seis meses para essa transição, não há movimentação visível para a contratação de pessoal ou investimentos estruturais que possam sustentar essa demanda, que irá crescer de forma exponencial. Pelo contrário, houve contingenciamento de recursos, o que pode agravar uma situação já projetada como insustentável, atendendo aos interesses daqueles que advogam por uma política mais permissiva.

Portanto, para fortalecer a atual política responsável de controle de armas, de forma que ela contribua com a segurança pública e com a redução da violência no país, será necessário ir além da edição de decretos. A reafirmação do papel da Polícia Federal como órgão central do sistema nacional de controle de armas foi uma sinalização importante e adequada, tendo em vista a maior proximidade da instituição com as demandas sociais e de segurança pública. No entanto, para que a PF possa exercer esse papel central no sistema, inclusive em articulação com as polícias estaduais no que se refere à investigação de desvios no mercado legal e para retirada de armas de fogo do crime organizado, ela deve ser dotada de recursos necessários para tanto, tendo em vista que suas responsabilidades vão agora se estender ao gerenciamento e fiscalização de aproximadamente 4,8 milhões de armas de fogo a partir de 2025. Adicionalmente, é importante que o Governo Federal seja uma voz e um ator responsável no debate público e legislativo sobre o tema, não ficando a reboque dos grupos armamentistas e industriais organizados na definição da agenda.

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